Por Fernando Calmon
O começo foi difícil, típico de novas tecnologias. Houve quem identificasse uma simples jogada de marketing, mas essa impressão durou pouco. Em 15 de março de 2003, a Volkswagen lançou o primeiro automóvel brasileiro com motor flexível em combustível. O Total Flex de 1.600 cm³, do Gol, era capaz de utilizar etanol, gasolina ou qualquer proporção entre os dois. Em junho de 2003 a Chevrolet apresentava à imprensa o Corsa 1,8 l flex, insinuando que o Gol não estava à venda e se autoproclamava pioneira. Era só inveja e logo se viu que a novidade ia mexer mesmo com os rumos do mercado. Em outubro de 2003 a VW lançou o Fox com o primeiro motor flex de 1 litro, pois essa motorização respondia por mais da metade das vendas internas. A Fiat, então, se esforçou para ser, pelo menos, a primeira com o flex dessa cilindrada entre modelos de entrada. Porém, no mesmo dia 15 de agosto de 2005 em que a empresa reunia jornalistas para mostrar a novidade no Uno e no Palio, a Volkswagen distribuiu a informação: o Gol City 1.0 Total Flex já se encontrava disponível nas concessionárias. Marketing à parte, o viés técnico avançou nesses oito anos. Embora se soubesse que a taxa de compressão deveria ser aumentada para melhor desempenho e economia com etanol, até hoje alguns fabricantes ainda mantêm a taxa inalterada por razão de custos. No entanto, houve várias conquistas. A capacidade de processamento das centrais de gerenciamento quadriplicou de 8 bits para 32 bits. Aumentou a velocidade de identificação do combustível e readaptação do motor após o abastecimento. O controle de detonação passou a ser digital. Gerenciamento eletrônico da válvula termostática surgiu nos motores Ford. Um dos desafios foi atender as etapas da legislação de emissões do Proconve. Os flex tiveram que passar da fase L4 (2005, 2006 e 2007) a L5, em 2009 (substituída afinal pela L6 e antecipada para 2013). A busca por atingir as metas teve sua importância no sucesso da nova tecnologia. O esforço maior ocorreu no Brasil porque em outros países os motores flex dispõem de pouco etanol para abastecer e a indústria no exterior se concentrou nas emissões com gasolina. Ainda assim, ao gerenciar dois combustíveis no mesmo motor e enfrentando dificuldades diferentes (aldeídos, por exemplo), chegou-se ao avançado estágio atual de diagnose a bordo (OBDBr-2). Uma batalha vencida pela engenharia brasileira. A concentração de objetivos em emissões, em função da lei, tirou algo do foco no desempenho em si dos motores. Os ganhos em consumo de combustível, potência e torque foram discretos, com algumas exceções. Marcas que ousaram em termos de taxas de compressão, como Chevrolet, Volkswagen e Ford, sobressaíram na segunda geração dos flex. Produtores japoneses e franceses, recentes no País e sem experiência prévia no uso de etanol, ficaram um pouco para trás. A Toyota, por exemplo, recomenda abastecer com um tanque de gasolina, a cada 10.000 km, providência inócua pela experiência acumulada no País. Um ponto, no entanto, deixou de evoluir conforme se esperava. A Volkswagen oferece o único modelo – Polo E-Flex, lançado há dois anos – a dispensar partida a frio auxiliada por gasolina. Em todos os outros carros, seus e da concorrência, o jurássico tanquinho permanece, graças aos clássicos argumentos de custo maior ou necessidade de evoluir. A GM diminui o volume do reservatório ao conseguir partida do motor, sem ajuda de gasolina, a temperatura até 2 graus abaixo do limite convencional. Porém, no geral, houve acomodação e pouca visão comercial. Por sua parte, produtores de sistemas de injeção – Bosch, Delphi e Magneti Marelli – seguiram estratégias mais e menos eficazes, além de custos diferenciados. A Fiat guarda segredo sobre uma nova solução que considera ousada e competitiva. Sinaliza apenas que desenvolve pré-aquecimento combinado de ar e de combustível, facilitando a partida nos dias frios. Livra-se do tanquinho e drena menos potência elétrica da bateria. A fábrica também exibe outro trunfo: o sistema Multiair de gerenciamento eletrônico das válvulas de admissão elimina também perdas por bombeamento da borboleta de aceleração. O etanol, em particular, tem bastante a ganhar ao se adotar esse recurso. Na realidade, a partida sem gasolina traz grandes vantagens em termos ambientais e de dirigibilidade na fase fria, quando o motor está abaixo da temperatura ideal. Obviamente será muito melhor ao utilizar etanol. Contudo, nas situações de temperaturas baixas, haverá também benefícios quando a gasolina for o combustível escolhido.
Os fabricantes admitem que a fase L6 do Proconve será importante para a retirada do tanquinho, iniciando a terceira geração dos motores flex. O cronograma do Conama – a partir de 1º de janeiro de 2014 para novos modelos e 1º de janeiro de 2015, os demais – estabelece parâmetros. Entretanto, no segundo semestre de 2011, essa página do atraso poderá começar a ser virada, pois se prevê que outros carros receberão partida com assistência elétrica e não apenas séries especiais. Os passos seguintes estão menos claros, após consultas a fabricantes de veículos e fornecedores. A injeção direta de combustível trará um grande salto técnico e, novamente, ganhos proporcionalmente maiores para o etanol. No entanto, além da barreira do preço, alguns engenheiros argumentam que para alcançar a quarta geração de motores flex há desafios como formato da câmara de combustão e melhor aproveitamento das enormes pressões de injeção. E, finalmente, a adoção de turbocompressores, com injeção indireta ou indireta, levará à consagração dos flex. Em razão da tendência ao downsizing (ou rightsizing, o tamanho certo) observada no exterior, a sobrealimentação será ampliada em motores de ciclo Otto, barateando os turbocompressores. Com essa tecnologia a taxa de compressão poder ser mantida, variando a pressão do turbo em função do etanol ou gasolina no tanque. Nessa altura, poderia se optar por um motor flex à brasileira, de fato mais voltado ao uso de etanol do que de gasolina, ao contrário do ocorrido nas fases iniciais.
Mitos e bastidores
Há uma tese de fácil defesa envolvendo os flex. Se no início da era do etanol no Brasil, ao se lançar o Proálcool em 1975, já houvesse os recursos de eletrônica, talvez não existissem motores apenas movidos pelo combustível vegetal. Entre as vantagens do motor flexível está a diminuição do risco agrícola, em razão de quebra de safras ou aumento súbito de demanda. No entanto, mitos surgiram na fase inicial. Alguns usuários achavam que seus motores anteriores, exclusivamente a gasolina, eram mais econômicos do que quando usavam gasolina em um flex. Sem lógica porque a escalada de taxas de compressão – em razão do etanol – também melhora o rendimento térmico e o consumo ao usar o combustível fóssil. Recomendava-se o primeiro abastecimento só com gasolina ou usar os dois combustíveis alternadamente para lubrificar ou proteger válvulas. Outras lendas: etanol tornaria o motor áspero (acontece em teoria, porém instrumentos de testes demonstraram ser praticamente indetectável na prática); ao trocar gasolina por etanol e parar o carro em seguida numa garagem, o motor desconheceria a mudança e não partiria em dias frios (um ou outro caso foi detectado e logo solucionado); ao misturar gasolina e etanol, os combustíveis se separariam no tanque após alguns dias e impediria a partida com etanol em baixas temperaturas. Nos bastidores comenta-se que a Honda teria instalado o tanquinho no para-lama pela falta de espaço livre no cofre do motor do Civic e manteve a solução, por coerência, nos Fit e City. A Nissan deu sorte e nos modelos Livina utilizou um local esquecido para embutir o pequeno reservatório de gasolina: entre o para-brisa e o início do capô, com fácil acesso externo, protegido e sem necessidade de abrir o cofre ao abastecer. Ao utilizar gasolina em um motor flex, de fato, há um problema eventual. Fraudadores que adicionam etanol além dos 25% de lei ganham dinheiro à custa do consumidor. O motor funciona perfeitamente, mas o usuário perde duas vezes: ao pagar mais pelo combustível e ter o consumo aumentado sem, muitas vezes, perceber. Nesse caso, só resolve a fiscalização constante.
Tudo muito bonito na teoria, mas a prática mostra outra coisa: motores flex consomem sim bem mais que seus equivalentes monocombustíveis e o álcool não costuma ser vantajoso por muito tempo no país. E mesmo nos momentos em que o álcool está mais barato, o carro somente a gasolina ainda ganha no fim das contas por ser bem mais econômico.
ResponderExcluirA única vantagem teórica do flex seria ter a opção do álcool caso a gasolina acabasse de vez. Teórica porque se a gasolina acabasse mesmo, a produção de álcool não daria conta da demanda de qualquer jeito e estaria todo mundo na roça da mesma forma. Aquele outro argumento, da poluição menor do álcool, também não procede, porque esses motores flex são também mais poluentes e o processo de produção do álcool também é bastante poluente em si, com muitas queimadas e tal.
Flex é pegol total. O Brasil deveria largar logo esse atraso e buscar tecnologias verdadeiramente modernas e eficientes pros motores: turbo, injeção direta e por aí vai.